11 de jan. de 2013

Indigenas e internet

O que os indígenas têm a dizer
Se houver uma apropriação adequada da tecnologia, internet articula saberes entre povos nativos e sociedade urbana.
Áurea Lopes

QUANDO um computador chega a uma aldeia, esse “objeto não indígena” não pode ser apresentado à comunidade como uma “invasão” do homem branco. Por isso, a organização política de cada grupo tem papel determinante no curso e no destino dos projetos de inclusão digital. Essas são algumas conclusões resultantes das observações do antropólogo belga Nicodème de Renesse, que fez sua dissertação de mestrado sobre o uso da internet e da comunicação entre os ameríndios no Brasil.
entrevista o que os indigenas tem a dizer
O pesquisador, que organizou em 2010 o Simpósio Indígena sobre Usos da Internet no Brasil, realizado pelo Centro de Estudos Ameríndios (Cesta) da Universidade de São Paulo, chama atenção para a ação dos agentes externos que facilitam o acesso dos índios às tecnologias da informação e da comunicação. “Se você vai lá, instala as máquinas e vai embora, não acontece nada”. Depois disso, diz ele, ainda tem um caminho difícil no convencimento dos mais velhos pelos jovens, que dominam as ferramentas.

De que forma os indígenas usam a internet?
Nicodème de Renesse – Nós vemos que os índios estão assumindo e reivindicando uma participação na sociedade cada vez maior. Eles vão para a universidade, ocupam cargos políticos e também utilizam os meios de comunicação eletrônica para tecer relações para além do grupo. Na minha tese, em 2010, eu fiz um levantamento parcial que apontou a existência de 111 pontos de acesso à internet em aldeias indígenas, a maioria instalada após 2007, principalmente em escolas e organizações comunitárias. Algumas comunidades dispõem da internet nas sedes de suas associações nas cidades, ou em repartições administrativas que ficam em seus territórios.

Os baniwas, por exemplo, que vivem na fronteira com a Colômbia, no alto Rio Negro, utilizam laptops para se conectar à rede pelas antenas dos pelotões do exército. Meu estudo abrangeu os sites de conteúdo indígena. Não cheguei a estudar as redes sociais, mas vi que os povos indígenas usam muito as redes, fazem contato, namoram e se casam com integrantes de outras tribos que conheceram nas redes sociais. Uma das mais expressivas lideranças dos suruís, Almir Suruí, de Rondônia, se casou com uma xukuru-kariri que conheceu no Orkut.

O que você observou em sua pesquisa sobre conteúdos de sites indígenas?
Nicodème de Renesse – Em geral, na sociedade não indígena, os meios de comunicação tendem a tratar os índios como indivíduos diferentes. Em um primeiro momento, achamos que eles iam usar a internet para isso, para mostrar como são diferentes. Mas não. Eu constatei que no projeto de comunicação dessas pessoas está a tendência oposta, de mostrar que os problemas são fundamentalmente os mesmos em todas as sociedades. Eles têm pontos de vista diversos sobre problemáticas conexas ou complementares às nossas, não indígenas. O que os índios sabem tem validade, tem importância para a sociedade não indígena. O discurso desses povos na rede indica que são sujeitos na relação; não são apenas seres exóticos, mas pessoas que têm alguma coisa a dizer, a colocar, a trocar. E para essa troca precisam fazer o que eu chamo de articulação do conhecimento, precisam mostrar que o que eles sabem é pertinente em termos não indígenas.


Essa troca com o mundo externo não desqualifica os saberes nativos?
Nicodème de Renesse – Isso é uma luta de cada comunidade. Há situações muito diferentes de um grupo para o outro. Mas, acima de tudo, depende fortemente de os colaboradores externos apontarem os caminhos, darem as chaves para o uso adequado das ferramentas tecnológicas. E depois vem outra etapa a ser vencida, que é um processo de negociação dentro da comunidade, para o grupo entender que realmente tem alguma coisa importante a se fazer com essas ferramentas. Mas o principal é a primeira abordagem pelos terceiros, pelos atores não indígenas, que são fundamentais nesse processo. A qualidade da reflexão que eles propõem ao levar um programa de inclusão digital às comunidades, a forma como introduzem os conceitos e as atividades é fundamental. Se você vai lá, instala as máquinas e vai embora, não acontece nada.

Os programas públicos de inclusão digital atendem a necessidade específica dos indígenas?
Nicodème de Renesse – Em geral, não. Todo o conhecimento em circulação sobre a relação dos índios com as novas tecnologias é produzido por terceiros, por protagonistas exteriores aos grupos e cuja percepção é orientada pelas próprias motivações. As populações atendidas ocupam uma posição completamente marginal na elaboração de conhecimentos sobre a inclusão digital que lhes diz respeito.

A aculturação para o uso da tecnologia é fácil entre as comunidades?
Nicodème de Renesse – Bem, temos de lembrar que o computador é um objeto não indígena. Para nós, não indígenas, é fácil compreender o que é um computador, imaginar como funciona uma máquina desse tipo. O computador tem uma série de conhecimentos embutidos, que a gente assimila com naturalidade, não questiona. Entre os indígenas, perceber que aquilo é uma ferramenta e pode ser apropriada para determinados fins, que pode interessar à comunidade, é um longo caminho, muito difícil. Quando a tecnologia chega a uma aldeia, a organização política de cada grupo tem papel determinante no curso e no destino dos projetos de inclusão digital. Os casos variam, mas em linhas gerais observei duas tendências. A primeira: nos grupos desprovidos de plano de governança que incluam uma gestão dos meios de comunicação, a internet se limitou a preencher a agenda externa dos parceiros de projetos. Ou seja, se chocou com a organização do grupo, gerando conflitos. As lideranças tradicionais viram o instrumento nas mãos dos jovens como uma ameaça para sua autoridade, para a ordem social e para o próprio grupo. No Simpósio realizado na USP, os relatos das experiências dos povos ikpeng, kuikuro, xakriabá, entre outros, vimos a internet na comunidade reduzida a um contexto formal, geralmente relacionado a atividades escolares ou administrativas, o que parece render poucos benefícios. Aí a tecnologia desperta desconfiança ou hostilidade por parte das gerações mais velhas.

Como seria uma apropriação adequada da ferramenta pelos indígenas?
Nicodème de Renesse –  Nas aldeias onde a comunicação faz parte de um projeto político, houve a busca de um consenso para que o novo instrumento estivesse a serviço das decisões e do projeto político do grupo, fortalecendo os papéis de liderança e, na opinião da comunidade, o próprio grupo. É o que acontece entre os suruís ou entre os kaiowás da aldeia te’yikues. A internet se torna uma plataforma de atuação e relacionamento importante para o grupo. E é muito bem recebido  por isso. Os suruís, por exemplo, perceberam que a rede servia de suporte e veículo para os conhecimentos e, portanto, constituía um conhecimento tipicamente agregador, somando-se aos outros e a serviço deles. A ideia por trás disso é de que, preservar a cultura indígena é adquirir o que é novo e juntar ao restante para ampliá-lo.

Por que há resistência das velhas lideranças?
Nicodème de Renesse – A questão de fundo é que, na cultura indígena, anciões detêm o conhecimento sobre as coisas do mundo. Mas, hoje, são os novos que detêm o conhecimento da tecnologia e estão empoderados com a capacidade de atuar na relação com a sociedade não indígena, que é fundamental. Então, nos casos em que há um entrosamento, onde os jovens tentam incluir os mais velhos e criam um consenso para em conjunto estabelecer um projeto de comunicação, aí funciona a apropriação da tecnologia. Ao contrário, se os jovens não incluem os mais velhos, não há consenso, não há projeto de comunicação. O uso da internet fica individual. E sofre resistência. No Simpósio da USP, um jovem do Xingu disse que as lideranças mais velhas “têm medo” do avanço da tecnologia, da forma como os jovens vão usar a internet, e por isso proíbem o acesso na aldeia. Por conta disso, reforço, é importante a forma como o programa de inclusão é introduzido por agentes externos na comunidade, e, em seguida, a forma como os jovens levam o programa para as  lideranças mais velhas.

O receio é em relação às redes sociais?
Nicodème de Renesse – Também, mas não apenas isso. Em relação às redes sociais, o problema é o uso individual e impermeável da tecnologia. O uso não aproveitado pelo grupo, em que os jovens criam relações fora e se desvinculam da comunidade. O receio maior é de que o índio não pertença mais à comunidade, se desligue. Mas não se trata de um desligamento físico e sim do conhecimento, da cabeça. Se o jovem tem várias relações externas, passa horas no computador, aos poucos vai se desfazendo da comunidade e isso sim é ruim. De outro lado, se as relações são para agregar, aí são benéficas. Porque a cultura é o que você consegue absorver do que vem de fora. A gente interpreta a cultura como uma coisa de dentro, mas na verdade vem de fora. Nossos números, por exemplo, são árabes... Para os índios, a cultura é o que eles conseguem agregar, o que vem do mundo não indígena. A cultura se transforma, é uma característica dos indígenas. Às vezes você percebe uma absorção de coisas externas e pensa que está indo tudo água abaixo e no fundo é a maneira deles de se apropriarem das coisas.

Mas há outro tipo de questão. Por exemplo, um caso que aconteceu com os ikpengs. No museu de Goiânia, há registros de toda a história desse povo, desde o contato, em 1964, até a transferência para o Xingu. De acordo com a tradição deles, não é permitido ver imagens dos familiares que já morreram, eles dizem que não pode ficar “nenhuma lembrança”. Só que muitas fotos foram postadas no site do museu, o que gerou um verdadeiro drama na comunidade. Os velhos não admitiam essa violação à sua cultura. Outra situação curiosa que resultou do acesso à internet, também com os ikpengs, foi que, quando colocaram internet nas escolas, os indígenas fizeram pesquisas na rede sobre eles mesmos. E encontraram uma banda de música chamada ikpeng. Isso causou uma enorme polêmica porque foi considerado um roubo do nome, ofensa gravíssima entre eles. E os velhos acabaram culpando os jovens por expor a imagem e o nome do grupo pelo mundo. Para reverter esse sentimento, foi muito difícil.

Você pode citar experiências em que haja o uso adequado da ferramenta?
Nicodème de Renesse – Os próprios ikpengs, superando o trauma inicial, desenvolveram um trabalho muito interessante. Deram uma verdadeira virada no jogo. Têm um site onde apresentam de forma resumida, de fácil compreensão, bastante rica e panorâmica, o que são os ikpengs ou, mais exatamente, o que eles querem que saibamos que são. [Ver reportagem Guerreiros ikpeng em defesa de sua cultura, ARede, edição 86, novembro de 2012]. Outro destaque é para os suruís, que estão construindo um mapa multimídia de seus territórios, em parceria com o Google e a organização não governamental Equipe de Conservação da Amazônia. E muitos outros: o blog Coletivo Kuikuro de Cinema, o site da Hutukara Associação Yanomami, o site oficial dos paiter-suruís.

Como é a questão de infraestrutura e manutenção nesse universo, onde as condições geográficas são tão desfavoráveis?
Nicodème de Renesse – Pois é, introduzir internet em área indígena não é como introduzir internet na periferia urbana. Para começar, o transporte dos equipamentos é muito caro. Vamos pegar o exemplo do Xingu, que é de grau médio de dificuldade. É preciso fretar um barco para descer o rio Xingu até o limite do Parque Indígena, o que gasta em torno de trezentos litros de gasolina. Desse ponto, são mais 450 quilômetros até a cidade de Canarana, em transporte particular. Em 2010, o trajeto entre uma aldeia do médio Xingu e Canarana, ida e volta, custava em torno R$ 1,8 mil. A situação ainda é mais complicada na região Norte, onde vive metade da população indígena do país. Para ir até o povoado de Iauaretê, onde funciona o Centro de Inclusão Digital da Fundação Bradesco, por exemplo, você precisa fretar um barco que sai da cidade de São Gabriel da Cachoeira, localizada a 850 quilômetros de Manaus. De São Gabriel, vai mais um dia e meio pra subir o rio Uaupés. O administrador do Centro contou, no Simpósio da USP, que para chegar ao povoado tem de embarcar, chegar a uma cachoeira intransponível, desembarcar, embarcar de novo, chegar à aldeia e desembarcar. Então, esses equipamentos, que são frágeis, acabam se danificando. Segundo ele, enviam seis equipamentos e só chegam dois ou três em bom estado. Outra dificuldade é a formação dos monitores. Se precisa de uma semana pra formar um monitor de periferia ou de área rural, com os indígenas você leva muito mais tempo. E isso os programas não pensam. Esses agentes de inclusão são fundamentais. Os kuikuros, por exemplo, receberam um telecentro que não durou 24 horas. Sem saber, ligaram errado e queimaram todas as máquinas. Ou então, receosos de estragar, os índios não mexem e os equipamentos ficam abandonados, como aconteceu com os guaranis da aldeia Sapukai, em Angra dos Reis (RJ). Por tudo isso, os programas de inclusão digital só dão certo quando há um parceiro local, que tem trânsito na comunidade, compromisso de longo prazo com a comunidade. entrevista o que os indigenas tem a dizer02

Nicodème de Renesse é antropólogo, nascido na Bélgica. Está no Brasil há 14 anos e defendeu, na USP, a dissertação de mestrado intitulada Perspectivas indígenas sobre e na internet: ensaio regressivo sobre a construção e o uso da comunicação em grupos ameríndios do Brasil

FONTE: ARede nº 87 - dezembro de 2012, disponível aqui.

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